Se pudesse trocaria de vida, seria tão mais fácil ser um pombo. De certo, não perderia tempo com divagações, muito menos com lamentações. Olho-te com inveja pobre pombo, tu que vives apenas por viver, sem pensar nos porquês, ficas contente com as migalhas de pão que encontras no caminho, não te lamentas se está a chover ou está frio, não queres mais para além do que tens, nem te desiludes com os outros porque confias no teu bando. Já eu, este homem desmazelado, que em tempos foi casado, e tinha uma profissão distinta no ramo bancário, está em constante perturbação, a perguntar-se consecutivamente - porquê eu?
A mulher a quem jurei fidelidade, e cumpri - perdi-a - porque ela não cumpriu. “Já não te amo. Conheci outra pessoa”, disse ela sem um mínimo de pudor “É melhor cada um de nós seguir a sua vida”. E assim de um momento para outro tudo o que tinha de certo, tornou-se incerto. Como seguiria eu a minha vida sabendo que tudo o que tinha planeado tinha sido ultrajado. E o filho que planeamos ter? E a viagem que queríamos organizar? E as idas ao cinema à sexta-feira à noite? E os jantares inusitados? À base de calmantes e conversas com a psicoterapeuta segui a dita vida. Tu não precisas disso pombo, mas, eu precisei para continuar a dormir à mesma hora e para conseguir acordar todos os dias para ir trabalhar.
Mais tarde a dita crise tocou-me à porta. “Como sabes estamos com algumas dificuldades e temos que reduzir o quadro”, anunciou o meu chefe com o seu estilo snobe e calculista. Percebi que fazia parte da lista negra do desemprego. O meu mundo perfeito, alinhadinho, rotineiro e perfeccionista voltou a desabar, mais caixas de antidepressivos para cima da minha mesa de cabeceira, mais sessões de ajuda com a psicoterapeuta...
Em tempos, quando tudo estava no sítio certo eu era o primeiro a lamentar-me, ou porque estava a chover, ou porque o comer estava frio, ou porque as notícias que anunciavam na tv eram sempre as mesmas, agora que tudo é incerto, deixei de me lamentar, vivo um dia de cada vez, à espera de uma resposta. E gosto de vir aqui, observar o rio e imaginar a minha vida caso tivesse nascido pombo. “Experimenta”, as divagações foram quebradas por uma jovem mulher, com um aspecto mais desmazelado que o meu e a precisar nitidamente de banho. Ela ofereceu-me metade de um cacete seco e desmiolado para atirar aos pombos. Atirou e eu segui-lhe o exemplo e de repente ficámos cercados por centenas de pombos esfomeados. Ela riu-se com vontade, tinha um rosto bonito e atraente, e exclamou “Há quem precisa mais que nós”. Eu acenei com a cabeça e pensei que já não me sentia assim há muito tempo.
Treinando a escrita [12]